Quando o correntão passa, a vida cai!
- Rama rede de agroecologia
- 19 de set.
- 3 min de leitura

O que são os correntões para dois, dentre os três maiores biomas do Brasil? Que tipos de violências estão intrínsecas a esse método brutal que arrasta grandes extensões de floresta, abrindo espaço para um modelo de “desenvolvimento” e “progresso” que, na prática, significa agressão à vida humana e não humana por onde passa?
Essas questões precisam se apoiar no seu significado antropológico e existencial: o que os correntões representam para a humanidade? Escancaram a complexidade dos seus malefícios, abrindo outras perguntas maiores, que expõem a perversidade do capital contra aquilo que chamamos de vida, natureza, territórios, povos, crise climática, justiça social e racismo ambiental. São as contradições entre o discurso e a prática, numa guerra que atravessa teoria e realidade em um país que se apresenta ao mundo como defensor da justiça climática rumo à COP30, mas que nada protege nas entranhas do Cerrado e da Amazônia — biomas diariamente ameaçados pelo avanço do agronegócio, da monocultura e de um progresso que subalterniza a vida e rompe a relação sagrada entre ser humano e natureza.
Não surpreende que essas correntes de ferro, presas a âncoras de navio e arrastadas por tratores manobrados por homens, produzam estragos tão devastadores. Elas ampliam em proporções assustadoras o desmatamento ilegal que corrói o país. Mas o correntão não derruba apenas florestas: ele arranca vidas em movimento, subjuga existências inteiras, acorrentadas pela ganância que se traveste de “limpeza da área” para alimentar o mercado. Quando, na verdade, o que se alimenta é a destruição em massa de toda uma humanidade.
Na MA-349, que liga Aldeias Altas ao povoado Lagoa do Arroz, no Maranhão, é possível sentir na pele o sentido letal do correntão: seu funcionamento, sua lógica e a devastação que deixa como rastro. O projeto em curso não é apenas local, mas nacional. Ele se mapeia pela morte da terra, das águas, das florestas, dos povos e comunidades tradicionais que carregam os impactos diretos desse método perverso, tão peculiar quanto devastador.
Nos territórios de povos e comunidades tradicionais, a passagem do correntão é ainda mais cruel: destrói o meio ambiente, exaure recursos naturais, contamina rios, ameaça culturas e direitos, dilacera a subsistência e rompe o fio sagrado que liga floresta e vida humana.
Quando o correntão passa, não arrasta apenas árvores: leva junto a dignidade dos guardiões e guardiãs das florestas, dos que preservam as águas, dos que sustentam seus saberes ancestrais nos ciclos produtivos, na relação com os encantados, no sagrado como filosofia de vida. O que sobra não é apenas terra exposta — sobra a ganância do capital, encarnada no agronegócio, nos madeireiros e nos garimpeiros. Vai-se embora a brisa fresca, substituída pelo calor abrasador. Some a sombra, resta a insolação. Evapora-se a água, transformada em lama, rachaduras, terra estéril e saudade do rio que virou lembrança.
O que fica nas subjetividades após a passagem do correntão são as marcas de um Estado omisso, cúmplice da violência física e simbólica imposta pelo projeto de morte. É o mesmo Estado que garante, com seu aparato, que o desmatamento ilegal continue a ser regra para empreendimentos, fazendeiros, grileiros e pistoleiros. É a queda dos esquecidos, dos que o próprio Estado nega enquanto povo. Quando a vida não é vista como direito, mas como moeda de troca, o dinheiro dita quem pode existir. E, nesse jogo, caem todos: caem no esquecimento, caem na ignorância imposta, caem na perda dos direitos de existir, de preservar e de transmitir os saberes herdados dos ancestrais.
Onde os correntões passam, a vida cai. Tombam os sonhos, as esperanças, a existência. E não tombam de uma vez, mas aos poucos, como vela que se apaga em silêncio, até restar apenas a escuridão.
Lina Cunha
Teresina – PI, 05 de setembro de 2025.
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